quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A mãe devedora e o filho tributarista

Há algum tempo escrevi um artigo (intitulado “Sócrates, a Tributação Brasileira, o Empresário e a Cicuta”) que circulou em algumas revistas eletrônicas especializadas em direito tributário.

Comecei aquele artigo dizendo que, embora não seja de modo algum ignorado, “Fédon” certamente não é o mais popular dos diálogos socráticos transcritos por Platão. Mas é no extremo da circunstância em que “Fédon” se desenrola - a proximidade da morte. Em “Fédon”, narra-se a última conversa de Sócrates com seus discípulos pouco antes de beber a cicuta, pena a que tinha sido condenado sob a acusação de corromper a juventude de Atenas.

Encerrei o artigo com a seguinte frase: “Os contribuintes têm a obrigação de questionar. E se alguém discordar, por favor, tragam-me a cicuta.”.

Muito bem. Vou lhes contar uma história.

Minha mãe é uma devedora do Fisco. É verdade, não lhes nego. Ser devedor não é ser criminoso. Ela é servidora pública aposentada do Município do Rio de Janeiro. E em razão dos proventos inglórios que sempre recebeu mensalmente, deparou-se com a necessidade (certamente de tantos outros também) de continuar trabalhando e, por isso, se empregou novamente. Como ficou viúva muito cedo, tinha que bancar as despesas da casa e também de minha educação (na época eu ainda cursava a 7ª série).

Passou o tempo: comecei a trabalhar como office boy; entrei na faculdade; fiz estágio; formei-me; fiz especializações em direito tributário; e no decorrer de todo este tempo tive a oportunidade de trabalhar em bons escritórios de advocacia. Hoje trabalho em um escritório tributarista de qualidade e renome indiscutível.

Até algum momento desta linha do tempo eu não tinha como contribuir para o pagamento das despesas de casa. Logo, minha corajosa e incansável genitora pagava sozinha as contas de luz, condomínio, plano de saúde, supermercado, etc. Só consegui contribuir com alguma coisa no final da faculdade. Bem sabem os senhores que a remuneração de um estagiário não é uma fortuna.

Mas onde o Fisco entra nisso tudo? É simples. Não há IRRF sobre os proventos recebidos por ela do Município do Rio de Janeiro. Já o salário que recebe é retido à alíquota de 15%. Mas no ajuste, a soma dos rendimentos passa a ser tributado pela alíquota de 27,5%, gerando IRPF a pagar. E entre bancar o Fisco ou a própria subsistência, minha sábia mãe escolheu a subsistência.

Atualmente amenizo e muito o “impacto financeiro” lá de casa, mas o rombo fiscal é antigo e a solução foi parcelar a dívida.

Pois bem. Em um desses finais de semana ela me chamou na cozinha para uma conversa muito séria.

- “Filho, precisamos conversar seriamente. Onde já se viu?! O que eu ganho dá para pagar apenas minhas despesas, não tenho luxo nenhum!!! Espia só, dá uma olhada no meu guarda-roupa, não tem nada demais.... não tenho nem empregada e eu ando de ônibus.... e eu ainda tenho que pagar o imposto para o governo!?!?!?! Você tem que fazer alguma coisa!!!”

- “Mãe, é complicado te explicar. Mas te proponho o seguinte: vamos ao shopping no final de semana. Vou comprar umas roupas legais para você. Veja com o pessoal do seu trabalho se alguém conhece uma faxineira para colocarmos isso no orçamento. E quanto ao ônibus, se você conseguir acordar um pouco mais cedo eu posso te deixar no trabalho. E se nossos horários baterem, na volta eu passo lá e te dou uma carona para casa. Se não derem certo, você pega um táxi. Tudo bem?”

- “Não está tudo bem não meu filho!!! Eu não vou pagar o governo!!! Olha o jornal, é corrupção atrás de corrupção: E agora tem esse negócio de cartão corporativo... quer dizer que eu tenho que pagar imposto para esse pessoal comer tapioca e fazer viagem de turismo??? Você tem que fazer alguma coisa. Entra com uma ação meu filho. Você vai aparecer até no Jornal Nacional!!!”

- “Eu sei que é revoltante mãe, mas não dá. Teve uma juíza federal que há um tempo atrás determinou que o governo demonstrasse como estava aplicando a CPMF, se era ou não para a saúde, mas não deu em nada...”

- “Como assim?!?!??! Então entra com uma ação para eu não pagar mais esse parcelamento!!!”

- “Também não dá. Certamente não é justo, mas a lei é essa mesma.”

- “Duvido.”

- “Vou lhe explicar. Não há IRRF sobre os proventos que você recebe do Município do Rio de Janeiro. Já o salário que você recebe é retido à alíquota de 15%. Mas no ajuste, a soma dos rendimentos passa a ser tributado pela alíquota de 27,5%. A dedutibilidade das nossas maiores despesas é limitada, como por exemplo o plano de saúde. Não dá para deduzir toda a despesa da base de cálculo do IRPF. E por isso há imposto a pagar.”

- “Não entendi nada. Mas ainda acho que eu não tenho que pagar imposto.”

- “Então o jeito é você fazer o seguinte: eu compro umas roupas para você, te pago uma faxineira e te dou carona ao trabalho. Por outro lado você pára de ler o jornal.”

- “Não gostei. Você está tapando o sol com a peneira. Não vou pagar este imposto”

- “Então vamos fazer o seguinte: termina de pagar este parcelamento e depois nós fazemos outro parcelamento. Mas tem que terminar este porque do contrário o problema vai ser ainda maior”.

Moral da história: nem mesmo anos de especializações, intensa prática no direito tributário e a paciência infinita de um filho grato pelos esforços da mãe são capazes de explicar o funcionamento deste país.

Em geral, a população paga altíssimos tributos sobre sua renda e também embutidos nos preços dos produtos para ter péssimos serviços públicos, a ponto de muitos não sobreviverem sem planos de previdência privadas, planos de saúdes privados, seguros de vidas privados, segurança privada, etc.

E para muitas pessoas, especialmente a maioria esmagadora das pessoas físicas, não há planejamento tributário que lhes salvem da sanha arrecadatória do Estado.

Estivéssemos na antiga Atenas, muitos de nós seríamos condenados a beber cicuta, a começar por mim.

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